A Festa de São Gonçalo é uma celebração religiosa realizada em Aveiro, onde o Beato é carinhosamente tratado pelo diminutivo “Gonçalinho”. A celebração decorre actualmente ao longo de cinco dias, centrando-se no dia 10 de Janeiro, dia do falecimento do santo. A festa, celebrada no bairro da Beira-mar, inclui rituais de socialização na capela de S. Gonçalo e nos espaços adjacentes, dos quais se destacam as ofertas votivas, nomeadamente arremesso de cavacas, fogo de artifício sobre um dos canais da ria, bailes populares e concertos, romaria pelas ruas estreitas deste bairro e outras manifestações, como a chamada “dança dos mancos”. A passagem de testemunho de cada Comissão de Festas para a do ano seguinte traduz a natureza reprodutiva da celebração e introduz um outro ponto alto na festividade com a entrega dos “ramos” aos novos mordomos.
A Comissão das Festas de São Gonçalinho, composta pelos mordomos, detém a responsabilidade de organizar a festa e velar pela sua preservação e das tradições culturais que lhes estão associadas. A Festa de São Gonçalinho, no bairro da Beira Mar em Aveiro, decorre durante cinco dias, com o seu ponto alto no fim-de-semana, ocasião para o maior número de arremessos do alto da capela como pagamento de promessas, ao mesmo tempo que bandas filarmónicas e artistas de música pop actuam em palco, normalmente montado nas imediações da capela, e (embora esporadicamente) se ateiam os madeiros para saltar a fogueira. Domingo é o dia mais nobre dos festejos, devidamente assinalado pelo fogo de artifício nocturno sobre os canais da ria. Este é também o dia em que são anunciados, pelo pároco da Vera Cruz, durante a Eucaristia, o nome dos mordomos da festa para o ano seguinte.
Outro momento alto da celebração tem lugar na segunda-feira, com a passagem de testemunho da Comissão de Festas que se formaliza com o cortejo da entrega do ramo e com a “dança dos mancos”. Estes dois acontecimentos tanto podem ser encarados como uma espécie de desenlace dos momentos altos da celebração, como momentos de um outro ponto dramático, vivido não no círculo alargado dos visitantes, mas sim no círculo mais restrito da mordomia. O tempo diário da festa está organizado diferentemente ao longo das 24 horas. A manhã e o princípio da tarde são normalmente ocupados com a visita da população escolar, nomeadamente do pré-primário e do primeiro ciclo, à zona da capela. Sensivelmente a partir do meio da tarde, principiam os arremessos das cavacas, que prosseguem pelo menos até à meia-noite. Ao mesmo tempo, actuam as bandas filarmónicas e outros artistas convidados. Todos estes acontecimentos ocorrem no espaço característico do bairro da Beira-mar, onde a Capela de S. Gonçalinho está edificada, sendo a sua construção do início do século XVIII.
À semelhança de outras festividades tradicionais portuguesas, à centralidade da capela há que acrescentar as zonas imediatamente vizinhas, nomeadamente, e em primeiro lugar, o largo do mesmo nome e, num segundo passo, a Rua de Antónia Rodrigues, o largo da Praça do Peixe e o cais dos botirões. Em terceiro, deve ser considerado o conjunto de ruas e travessas da freguesia da Vera Cruz, que podem ser percorridas festivamente em diferentes combinações consoante os anos. Com efeito, durante o cortejo da entrega de ramos, em que tem lugar a mencionada passagem de testemunho aos novos mordomos, a intensidade festiva abandona temporariamente a zona da capela e transfere-se para esse percurso deambulatório, desenhado em função das habitações dos novos mordomos. Esta celebração da entrega de ramos é acompanhada por uma pequena banda filarmónica, que toca marchas, encabeçada pelos dirigentes da Comissão de Festas e pelos portadores dos ramos, seguindo pelas ruas do bairro.
As portas das casas dos novos mordomos devem estar abertas para que os mordomos antigos e os ramos possam entrar. Mas há ainda que voltar à centralidade da capela, para retomar um outro eixo de análise espacial. A subida à cúpula da capela, para cumprimento de promessas, constitui a experiência do plano vertical, que se pode traduzir numa nova relação entre o alto e o baixo. Ao subir a escada em caracol da capela, e ao chegar ao estreito terraço que corre a toda a volta, o devoto passa do mundo terreno ao mundo celeste. Não é difícil imaginar que, até há bem pouco tempo, o olhar se poderia espraiar livremente acima do casario, apropriando-se do espaço inteiro da cidade, dos canais da ria e das marinhas de sal.
Mas essa subida à cúpula tem, apesar de tudo, uma outra característica fundamental: é que, além do movimento dos olhos, o devoto tem a obrigação do movimento das mãos e dos braços. Ou seja, ele é pagador de promessa. Esta promessa é esta cumprida em cavacas, pães duros em forma de palmeta, cobertos de calda de açúcar branco. Não se trata de lançar o saco inteiro da promessa, mas sim de lançar as cavacas, uma a uma, sublinhando com o gesto aquilo que os olhos procuram. Estes arremessos, anunciados pelo repique da sineta, resultam do cumprimento de promessas. Do alto, o “pagador” entrega as cavacas ao Santo, lançando-as paradoxalmente para baixo, escolhendo simbolicamente os “humildes” que se empurram no largo. É localmente considerado “de tradição” que as cavacas que caem ao chão são abençoadas pelo Santo.
Mesmo quando se pretende escolher a quem entregar as cavacas, tal gesto, se apalavrado previamente, ficará sempre às vicissitudes da sorte, ou aos desígnios do Santo, que pode fazer com que a “doação” se desintegre no empedrado do largo ou no alcatrão da rua, como tantas vezes sucede, enchendo o chão de uma poalha esbranquiçada, ou que acabe numa naça de pesca espertamente manipulada, ou num guarda-chuva invertido ou, finalmente, nas mãos de um hábil vizinho. A diferenciação de papéis entre quem está no cimo da capela e em baixo não é clara, desde logo porque o pagador, de volta ao terreno do largo, se torna rapidamente aquele que procura pescar a cavaca, e este, galgada a escadaria em caracol, sob a protecção dos mordomos, ganha a condição de pagador. Uns e outros são devotos e esta condição é talvez a mais importante. A festa de S. Gonçalinho é proverbialmente considerada uma celebração igualitária, que não distingue o rico do pobre, e que tem como base social a comunidade beiramarense, dos “cagaréus”, tradicionalmente constituída pelos ofícios ligados à pesca e à extracção do sal, hoje tendencialmente substituídos por profissões do sector terciário.
E há também a presença dos emigrantes (mesmo que não necessariamente física), já registada em 1935 por José Tavares, nos seguintes termos: “É tão forte a crença nas virtudes de “S. Gonçalinho”, que nenhum “americano”, ao emigrar para a América, deixa de levar consigo a litografia do Santo, e é raro que algum deles se esqueça de enviar, lá de longe, para a festa, qualquer importância em dolas (dólares)” (Tavares 1935: 130). Também o “juiz”, Manuel Pacheco, que presidiu à Comissão das Festas em 2007 e 2008, testemunhou a participação dos emigrantes, nomeadamente da comunidade instalada em Newark, em Boston e em outros locais do leste dos Estados Unidos da América, nas obras de benfeitoria realizadas no templo. Muitos devotos formam fila esperando arremessar, lá de cima, os quilos de cavacas sobre a assistência que vai crescendo no largo à medida que o sol se põe. Nos dias de maior intensidade, são os mordomos, envergando o gabão de Aveiro, que orientam o acesso dos pagadores de promessa ao terraço na cúpula da capela.
Desde que os mordomos assumem o compromisso da organização da festa, em Janeiro, reúnem-se uma vez por semana até Setembro, mês no qual começam os peditórios de rua para o envolvimento de toda a comunidade. De Setembro até aos festejos de Janeiro marcam-se reuniões regulares, de forma a que tudo seja tratado convenientemente e não haja falhas nem faltas. O peditório de rua tem os seus percursos citadinos, alcançando os arredores da cidade, em caminhadas que durarão em média quatro horas por semana. O resultado do peditório, somado com outros donativos particulares, corresponderam em 2006 e 2007, a cerca de 27 e 30% das receitas obtidas, estas orçamentadas em cerca de sessenta mil euros, importância indispensável à organização do arraial, aos gastos com o fogo de artifício, ao pagamento de licenças e cauções e a outras despesas miúdas. Há que referir que os mordomos não recebem qualquer contrapartida financeira pelo seu serviço, sendo que as únicas refeições pagas pelo orçamento geral são o almoço de Segunda-feira com o pároco e o almoço ou jantar da passagem de testemunho aos novos mordomos.
No caso das mordomas, são elas que tratam de alindar com flores os altares da capela, tarefa na qual colocam o seu gosto estético e sensibilidade, cumprindo uma função muito apreciada por todos os que visitam o S. Gonçalinho nos dias de festa. Sublinha Manuel Pacheco que: “o processo das mordomas de altar, tanto quanto me foi dado observar, tem passado de mães para filhas, sendo em número incontável por todas se considerarem mordomas sempre, desde que realizam aquela função pela primeira vez, ao contrário dos homens, cuja função se extingue no final de cada comissão de festas” (Entrevista a Manuel Pacheco, 2008). As despesas com o alindamento da capela são atenuadas pela recolha das ofertas em dinheiro da Eucaristia de celebração da festa dominical, podendo acontecer que o diferencial seja posto do bolso de cada uma das mordomas, já que os arranjos de flores ascendem a muitas centenas de euros. Entre as flores reconhecem-se também outras promessas de outros penitentes: ex-votos em cera de pernas e braços. Durante o período da festa, as mulheres da Beira-mar visitam a capela mais do que uma vez, demorando-se entre conversas livres, orações e cânticos religiosos. Inspirado por tais presenças, o poeta aveirense Amadeu de Sousa, já falecido, escreveria entre outras quadras, esta levemente picante: “Toda a mulher casadoira / Vai morar à capelinha. /
Tempo demais na salmoira, / Deteriora-se a sardinha...” (Sousa 1989: 15). O anedotário faz da velha o alvo, mas esta velha tanto simboliza o ano invernoso que há-de findar, quanto a promessa da renovação sazonal. O interior do templo transforma-se, pois, em lugar de convívio e de cânticos religiosos subitamente interrompidos por músicas com letras profanas dedicadas ao Santo. A canção do “Cortejo de oferendas a S. Gonçalinho” eleva-se recorrentemente. Ao cair da noite de segunda-feira toma-se um hino audacioso, quando os mordomos juntam as suas vozes graves aos agudos femininos, gesticulando em direcção à imagem do Santo, antes da saída dos ramos. O refrão desta canção reza o seguinte: Neste dia de festança / Pr'a ti vai nosso carinho / Hás-de ir connosco na dança / Ó rico S. Gonçalinho / Hás-de saltar as fogueiras. / À noite no arraial / Dançar com velhas gaiteiras / Uma dança divinal. Em certas ocasiões mais animadas, uma senhora pode desafiar um vizinho para bailaricar no largo ou numa das ruas defronte.
Tal manobra toma-se particularmente comum durante o cortejo da saída dos ramos já referida. As fogueiras de Inverno, as velhas rapioqueiras e o alvoroço dos afectos revelam a faceta namoradeira do Santo, que representa aqui um papel análogo ao de Sto. António, o santo casamenteiro celebrado em Junho, especialmente a sul do Mondego; e, como este, o culto gonçalense tem vindo a actualizar-se. A par das celebrações descritas, dezenas e dezenas de vizinhos aglomeram-se no interior da capela aguardando esse momento especial, raramente nomeado, mas certamente desejado, que é a “dança dos mancos”.